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Luiza Sahd

Olho na Flip! A literatura pode chacoalhar sua vida

Luiza Sahd

27/07/2017 08h00

Arte da Flip 2017, de Jeff Tisher.

Parando para pensar, a gente busca literatura em tudo. Quando você encara uma fila enorme para entrar no show da sua banda favorita, não é só a música que você quer, mas também as memórias que vai evocar a partir dela, além das que você vai construir ali na plateia.

O ser humano é capaz das melhores e piores loucuras atrás de ter o que ver e o que contar. Foi por isso que você topou aquela viagem que seria nitidamente furada com uns amigos ou tentou reproduzir o tutorial lá de abir garrafa de cerveja usando uma sola de sapato. Trocando em miúdos: andamos por aí viciados em construir pequenas (ou grandes) histórias interessantes.

Se você é ocidental, quer queira, quer não, seu inconsciente tira um montão de conclusões e toma decisões cruciais com base em arquétipos construídos a partir de histórias que vem lá(áááá) da mitologia grega. O pesquisador Joseph Campbell desenrola incrivelmente esse raciocínio na série "O Poder do Mito", em uma grande entrevista ao jornalista Bill Moyers.

Mas o que me interessa aqui é falar de ficção, porque, de jornalismo, em um mundo globalizado, já estamos até o pescoço. A ficção mudou minha vida (nem sempre para melhor), e me fez ter odisseias próprias para contar. Xeretando a vida de protagonistas de livros e me afeiçoando a eles ao longo das leituras, fiquei mais capaz de aceitar as situações em que a nossa realidade parece ficção.

O contrário também aconteceu: quando o Gregor Samsa do Kafka acordou de sonhos intranquilos metamorfoseado em um inseto monstruoso, entendi, por comparação, que talvez também fosse a minha hora de sair de casa… e assim o fiz. Quando a Clarice Lispector falou de felicidade clandestina no livro homônimo, ela nem deveria imaginar que, depois de morta, ainda faria com que muita gente pudesse entender a própria intensidade sentimental a partir daqueles relatos. Por falar em Lispector, a Macabéa de "A Hora da Estrela" é muito a gente na internet compartilhando memes de animais fofos se dando mal com a legenda "Eu na vida".

E quando o Milan Kundera disse em seu "A Imortalidade" que "um homem pode colocar fim à sua própria vida, mas não à sua imortalidade"? Um choque. Desde então — e há anos — me pergunto o que vão comentar no meu velório e o que posso fazer a respeito disso enquanto ainda estou aqui.

Sempre fui briguenta, mas li o Valter Hugo Mãe dizendo em seu "A Desumanização" que, "quem não sabe perdoar só sabe coisas pequenas" e minha generosidade cresceu bastante depois que concordei com ele. A narrativa se passa na Islândia, e o livro me causou tanta curiosidade sobre o país que terminei a leitura e fui até lá, um pouco à caça de gêiseres e auroras boreais, um pouco aproveitando uma promoção de passagens aéreas e um pouco atrás dos meus próprios contos.

No dia em que todo mundo perdeu a visão em "Ensaio Sobre a Cegueira", do José Saramago, precisei fechar um pouco o livro para respirar antes de seguir com a leitura, porque, pensando bem, nada disso é completamente impossível. Se, ao se desprender da macieira, uma maçã sair flutuando ao invés de espatifar no chão, você reclama com quem? Tudo é possível, sério. Basta olhar para 2017 como se fosse uma novela, por exemplo, e podemos concordar que sim.

Foi por causa do "Ensaio Sobre a Cegueira", também, que assisti ao documentário "José e Pilar", em 2010, e saí do cinema de pernas bambas. Seis anos depois, me vi em Lanzarote, nas Ilhas Canárias (o lugar mais impressionante em que pisei), para fazer uma entrevista com Pilar del Río, esposa do autor — e a mulher que eu gostaria de ser quando crescer.

Essa coisa de dar corda demais aos livros tem me levado cada vez mais longe, física e mentalmente. A Pilar del Río, por sinal, é uma das palestrantes da 15ª Feira Literária Internacional de Paraty (Flip), que começou ontem. Não só o evento em si como as notícias sobre ele sempre trazem alguma novidade que aquece o coração de quem se empolga com literatura. A feira também revisita clássicos, eternos refúgios para quem curte se esquivar um pouco da realidade em espaços mais controlados do que, sei lá, o alcoolismo, as drogas ou esportes radicais. Ainda por cima, ler é uma coisa que podemos fazer deitados, comendo pizza, ou os dois ao mesmo tempo (!).

Acabei de gastar aqui meu melhor argumento a favor da ficção, mas outra bela evidência do potencial transformador deste tipo de leitura é a biblioterapia. De acordo com este artigo da "New Yorker", você já pode consultar profissionais que sugerem livros clássicos e certeiros para te ajudar a refletir sobre dilemas pessoais específicos, tipo sua dor-de-cotovelo, depressão ou o medo de mudanças. Curiosa sobre como funcionaria isso, consultei algumas vezes o "Farmácia Literária", que sugere mais de 400 "receitas" (livros) para o momento que o leitor-paciente está vivendo. Este livro, por sua vez, me fez ler outros, claro. E este post nunca vai terminar se a gente continuar falando de literatura, porque, além de tudo, ela sempre me deu muito assunto para puxar com desconhecidos em locais aleatórios ou com velhos amigos em espaços íntimos.

Aliás, me desculpa por falar tanto. E você? Me conta de você.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.