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Luiza Sahd

Nem Freud, nem Lacan. Quem entende as pessoas é o cara do SAC

Luiza Sahd

06/07/2017 12h06

Em 2015, a jornalista Nina Lemos escreveu uma coluna ótima sobre empregos na Europa. Ela mora em Berlim, eu moro em Madrid, e fiquei convencida de que por aqui, às vezes, o melhor que a gente tem a fazer é parar com essa palhaçada de "não estudei para isso" e ir trabalhar em uma loja de colchões. Ou em um SAC, como é o meu caso há quase dois meses.

Cena do filme O Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson

A gente chega num ambiente assim se sentido *o ilustradão do pedaço* e descobre que não sabia nada sobre o comportamento humano. Que experiência fascinante é lidar com gente frustrada.

Primeiro, você tem que torcer para que as pessoas tenham do que reclamar; caso contrário, você não tem trabalho. Em seguida, você começa a questionar os cientistas que se trancam em laboratórios de universidades chiques e saem dizendo que "pessoas que dormem tarde são mais inteligentes" ou que "irmãos mais velhos são mais bem-sucedidos". Esquece isso. Quem realmente manja da alma humana são esses caras que te escutam gritar sobre a fatura da internet que foi cobrada duas vezes por engano.

Em respeito a lei de proteção de dados de clientes, vou citar um caso aqui cuja protagonista chamaremos de Maria. A Maria tem 20 anos e estava puta das calças porque não ia receber a tempo os ingressos para o show de uma cantora pop que usa tiara de coelhinho.

Ela tinha razão? Tinha. Ela soube lidar com tamanha injustiça? Vejamos.

Maria entrou no chat que eu atendia escrevendo insultos desconexos. Precisei articular todos os anos da minha própria terapia para acalmá-la e finalmente entender o que se passava. Comentei o caso com um colega ao lado.

"Ih, gente. A Maria entrou no chat da Luiza"

"Rapaz, só hoje eu atendi a Maria duas vezes"

"Pois eu acabei de receber um e-mail da Maria perguntando se a gente queria que ela enviasse uma foto dela chorando ajoelhada para resolver o rolo. A pergunta era sincera."

Particularmente, burlei as instruções do meu treinamento e dei uns conselhos de vida para a Maria. Já fui adolescente também e só Deus pode me julgar.

O que nenhum cliente irado lembra quando precisa reclamar é que existem pessoas do outro lado. Para resumir um pouco a história, três andares da empresa conheciam a história da Maria de cor e salteado. Fui dormir aflita pensando nela. Minha primeira atividade ao chegar no trabalho, no dia seguinte, foi consultar no sistema que fim levaram os ingressos da Maria.

– Gente, a Maria conseguiu! Ela foi recolher os ingressos na cidade vizinha.

Galvão perdendo a linha na final do nosso tetracampeonato foi fichinha perto do que aconteceu aqui. Teve gente que quase chorou de emoção na central.

Houve também o caso do rapaz para quem eu explicava que o reembolso chegaria em cinco dias e ele respondia "ata" para todas as minhas mensagens. Nunca entendi se era uma "ata" sincero ou pura referência ao meme da Mônica. Eu ria e tentava, em vão, finalizar o atendimento. Um dia, um cara ofereceu uma caixa de vinhos para uma colega resolver o problema dele; ontem, um rapaz me ameaçou de morte (por sorte, ele mora em outro país. Fui checar porque me deu medo de sair do escritório sozinha à meia-noite).

Não é seu escritor favorito quem conhece os mistérios da psique humana. Woody Allen e François Truffaut sabem nada sobre sociedade em comparação com André Reis, o herói que atendeu estes clientes grosseiros aqui e ainda teve a elegância de responder "vai o senhor" quando foi mandado a lugares inóspitos. Quem sabe de tudo é o cara do SAC do seu banco que resistiu bravamente a seus apelos para falar com o supervisor por 15 minutos seguidos – até porque ele tomaria esculacho também do supervisor se transferisse a sua chamada.

Por outro lado, voltando a citar intelectuais, tem um diálogo muito bom no filme O Grande Hotel Budapeste (Wes Anderson) em que um camareiro explica por que ele se antecipa às necessidades dos hóspedes e acaba querido por todos. Ele diz que "até a pessoa mais pavorosa e sem atrativos só precisa se sentir amada para se abrir como uma flor".

Certeza que isso saiu da boca de um camareiro de verdade. Nem Shakespeare seria capaz de tamanha sabedoria.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.