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Luiza Sahd

Como a Espanha me mostrou o lado amargo da vida

Luiza Sahd

29/03/2018 04h00

 

Não importa o que você sinta por azeitonas. Um dia, elas te pegam (Foto: iStock)

No final de abril, completo três anos morando em Madri. A história é toda esquisita porque era uma capital que nunca fiz questão de visitar, mas cedi à insistência de uma chefe (obrigada, Camila!) e resolvi dar uma chance de três dias para a cidade em que eu faria duas conexões. "Já vai estar por lá mesmo, passeia!", eles disseram.

A chance de três dias eu já nem pude dar porque fiz a belíssima presepada de perder o passaporte na Itália. Acabei conseguindo chegar em Madri aos 47 do segundo tempo: um dia antes de voltar a São Paulo depois de uma espécie de mochilão de adulto. Assim como acontece com tudo o que "perco", achei o mesmíssimo passaporte na mesmíssima mala onde guardei logo depois de perder o voo.

Evidentemente, cheguei em Madri de má vontade. O viajante de classe média se inspira naquela teoria lacaniana de amor quando vai viajar: gasta um dinheiro que não tem em coisas que não queria. Isso dito, chequem seus passaportes sempre!

Ao contrário de mim, o céu de Madri no dia 25 de abril de 2014 transbordava bom humor. Em pouco tempo, eu descobriria que ele é assim sempre, inclusive no inverno.

Tudo muito bonito, um pessoal muito irreverente, uns preços mais camaradas do que os dos destinos anteriores… mas eu tava mesmo era exausta. Fugi do museu e fui me estirar no Parque do Retiro porque também sou filha de Deus.

Contemplando o próprio cansaço e um lago cheio de barquinhos, imaginei que loucura seria visitar aquele lugar com o meu cachorro, que tem um vício sério em piscinas e congêneres. Achei tão bonito que tirei até foto pra mostrar a ele.

Exatamente um ano depois, estávamos os dois ali, passeando no parque para descansar da viagem e da mudança. Lembrei dessa coincidência bonita das datas enquanto mordia uma azeitona hoje. Se alguém me revelasse, três anos antes, que eu um dia comeria azeitona sem ter uma pistola apontada para a minha cabeça eu ia era rir largada. O mesmo aconteceu com vermuth, pimentão, gin tônica (talvez seja bom repensar a relação com drinks) e outras comidas amargas.

Morar longe da sua rede de amparo te expõe a uma gama sem fim de amargores. No caso de Madri, talvez a questão do paladar adulto defina a cidade que te engana com um sol enquanto faz um frio sinistro — ou que te dá a falsa alegria de não transpirar submetido aos 40 °C por causa do ar seco.

O cabelo fica lindo, mas a cabeça dá um nó quando você chega no hospital estrebuchando de dor e eles não oferecem nem um remedinho na veia. A orientação geral costuma ser coragem na vida + 600 mg de ibuprofeno de 6h em 6h enquanto a dor persistir, não importando muito qual seja a ordem da dor. Pior é que funciona na maioria das vezes.

De alguma forma, os sabores amargos da Espanha foram se entranhando em mim. A doçura brasileira me surpreende cada vez mais, por contraste. Pelos mesmos motivos, só entendi minha própria doçura aqui, assim longe, enquanto aprendia intuitivamente que o amargo é diferente — e não necessariamente ruim.

Na pior das hipóteses, ele harmoniza bem com vinhos e cervejas e pode te fazer se sentir mais forte do que você supunha ser.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.