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Luiza Sahd

Natureza selvagem e barulho de tiro: o Rio de Janeiro não me deixa dormir

Luiza Sahd

06/03/2018 05h00

Se você não tiver vontade de aplaudir esse pôr-do-sol, já está morto por dentro e nem se deu conta. (Foto: Arquivo pessoal)

 

Ficar dois anos sem vir ao Rio de Janeiro só pode ter sido algum tipo de resgate cármico. Meu sonho sempre foi morar aqui, apesar de todos os pesares. Este ano, quando disse que viria, um bando de gente veio com o papo do "cuidado lá, muito perigoso" — que não é bem assim, mas é assim também. Em São Paulo, existem perigos parecidos e uns diferentes (tipo asfixiar por motivo de não conseguir enxergar o horizonte, abstinência de mar e tal).

Ignorei as orientações e pousei no Santos Dumont de coração aberto e olho vivo. Em menos de 20 minutos, já estava embasbacada com a beleza da cidade e parei de pensar muito sobre a parte ruim. Aqui tem bolinho de feijoada com chope aguado que, misteriosamente, embriaga mais do que chope normal. Os caras empanam e fritam o que já era a melhor coisa do mundo, sabe? Não tem como não confiar nesse pessoal.

Na praia, enquanto colocava meia tonelada de papo em dia com uma prima, veio o choque. Um vendedor de salgados dá o maior esporro nela: AMIGA, TÁ DANDO MOLE COM O CELULAR AÍ. NÃO PODE DAR MOLE COM O CELULAR, PÔ. "Dar mole" é uma das melhores expressões locais inclusive pela eloquência, então a gente se desculpou como se tivesse feito algo muito ofensivo mesmo enquanto guardava o aparelho.

Aproveitando o incidente, ela contou sobre um golpe que tá rolando no centro da Cidade Maravilhosa: o pessoal que tenta comprar celulares usados por lá pergunta se os aparelhos são roubados e os rapazes explicam que não, longe deles! Supostamente, os preços são camaradas porque eles têm um "esquema" com o gerente de uma loja ao lado. Então, o cliente dá o dinheiro vivo pro vendedor, que entra por uma porta da loja ao lado… e foge, para sempre, pela porta que dá para outra rua.

Todos os dias, o pessoal da loja precisa explicar às "vítimas"  que não tem nada a ver com isso. E "vítimas" vão entre aspas porque quem topa participar desse tipo de esquema é caça e caçador, né?

Saí da praia e aproveitei para dar uma caminhada pela orla aberta aos pedestres. Tinha música ao vivo, gente malhando, gente passeando cães e crianças fofas, uma brisa refrescante. Não tem como não se sentir em uma novela do Manoel Carlos nessa hora. Emocionada, tentei acender um cigarro e fiquei feito trouxa com ele apagado na boca enquanto tateava o fundo da mochila, até escutar uma voz doce a meu lado: "eu acendo pra você, amiga". Era um rapaz que vendia bijuterias.

Agradeci e fui acendendo minha chupeta de ansiosos enquanto ele: "Ah, achei que tinha isqueiro e cigarro mas tenho só isqueiro, que doideira!". Olhei de soslaio e vi um maço vazio ao lado dos brincos expostos. Claramente, eu estava sendo vitimada pelo golpe do pedido de cigarro disfarçado de gentileza. Como gosto de observar até onde vai a ousadia das pessoas, terminei de usar o isqueiro, dei um trago e repeti: "doideira mesmo, hein?". Silêncio. Agradeci o favor e fiz menção de sair andando, até que ele mudou o tom da voz para o modo aborrecido e perguntou se eu poderia deixar um cigarro lá. Esse papel de trouxa que o Maneco escreveu pra mim foi um presente, mesmo.

O final dessa história você decide, mas o fato é que o Rio não deixa a gente dormir. É tanta possibilidade de "dar mole" misturada com doses cavalares de beleza que a gente desnorteia. Tem natureza selvagem e barulho de tiro. Tem comida gostosa e risco de salmonella. Tem gente malhando a sério e você lembra que precisa cuidar melhor da própria carcaça.

Outra coisa peculiar da cidade, aliás, é que ninguém consegue fingir que é bonito no Rio. Ou você é ou não consegue dar truque, porque vai ter que andar com pouca roupa, a maquiagem vai derreter e o cabelo vai ficar elétrico ao menor contato com a brisa do mar.

O Rio sempre tira meu sono porque é o melhor lugar do mundo com o selo "Viver É Arriscado" de qualidade. Sem caô: até parece que dá pra se emocionar assim em outro lugar.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.