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Luiza Sahd

Ter cães equivale a um doutorado sobre constrangimento

Luiza Sahd

15/01/2018 08h00

O mundo, de acordo com o olhar canino (Foto: Reprodução/Twitter)

 

Venho falando desde 2010: o quociente do amor é dado pelo número de vezes em que você permite que o outro te faça de trouxa.

Também falei sobre a gratidão por ter dois cães para me fazer de gato e sapato e me ensinar tanto sobre onde realmente podemos procurar amor.

Tendo tudo isso dito, não posso omitir que a luz só existe em contraste com as sombras — e não seria diferente no caso dos cachorros. Há seis anos, sou uma PhD em constrangimento causado por motivos de: cães são seres espontâneos.

Hoje mesmo fui vitimada por essa característica dos meus peludos. Depois de quase uma semana de chuva, o sol resolveu dar as caras e minha primeira ideia foi sair para um longo passeio com eles, que já não aguentavam mais ficar trancados em casa. Existem duas formas de fazer chover sem parar em uma cidade árida como a nossa: a primeira é a volta de Jesus Cristo; a segunda é dar banho nos cachorros — e foi nessa que apostei. Funcionou, claro.

Ao longo dos primeiros 500 metros de caminhada, tudo correu bem. Eles fizeram cocô e eu tinha saquinho pra recolher, eles correram e brincaram… Mas aí chegou uma excursão escolar e os adolescentes foram seduzidos pela beleza da minha duplinha. Se aproximaram em um bando de 15 para mexer nos bichos e, conhecendo meu gado, eu sabia que ia dar merda. Meus cães amam plateia para fazer presepada, é impressionante.

Afago daqui, elogio dali, meu golden começa a esfregar a bunda no chão girando em sentido anti-horário. Chato, né? Todo mundo riu e meu cão sabe que todo artista tem que ir aonde o povo está. Não contente em arrastar a bunda, ele levantou e fez aquilo que chamamos de "batonzinho" ou "foguetinho rosa". Em termos práticos, isso aí é a ereção do cachorro. Romeu se emocionou e brindou os fãs com aquela parada feia saindo do peru enquanto uns riam, outros se assustavam, mas a unanimidade era que todos olhavam para a minha cara buscando explicações. PhD em constrangimento que sou, dei um sorrisinho amarelo e saí arrastando o bicho pela coleira, porque é evidente que ele queria continuar com o espetáculo ali. Meu cachorro teria tudo para trabalhar no Teatro Oficina, mas, infelizmente, ainda não teve oportunidade.

Foi ele também que interrompeu o show de artista de rua uma vez porque ficou maravilhado com o hamster que saía da cartola do rapaz vestido de Chapeleiro Maluco. O hamster, quando viu de perto a fuça do meu bicho de 40 quilos, também se emocionou. Se emocionou tanto que fugiu, para desespero do performer e dos espectadores. Sei nem explicar a emoção que senti quando esse hamster foi encontrado (principalmente porque não estava na boca do Romeu).

Como foi dito antes, meu golden não está sozinho. Ele e minha lulu da pomerânia são uma espécie de célula terrorista na Europa.

Para quem está solteiro, passear com os cães é uma ótima forma de dar pinta por aí e ter assunto com desconhecidos… ou deveria ser. Acontece que, ao contrário de mim, minha cachorra não curte conhecer gente nova.

Em todas as vezes que alguém disse "que fofa!" e tentou afagá-la, sem exceção, ela latiu caprichado e deixou o interlocutor quase surdo. Se essas pessoas cogitaram em algum momento fazer amizade comigo ou quem sabe algo mais, pode apostar: ali mesmo, desistiram.

Cada passeio com os cães me reserva emoções. Gosto delas, mas nem sempre precisaria ser algo como gritar histericamente em um ponto turístico lotado enquanto um dos meus pets desfila com um pássaro morto e decomposto na boca. A gente sempre fica na dúvida se põe a mão na carniça pra salvar o cachorro de engolir o cadáver, se deita no chão e chora enquanto ele mastiga aquilo ou se doa logo o cão porque ele extrapolou seu limite emocional (e porque você jamais vai aceitar uma lambida dele nos próximos seis meses).

Teve também o emocionante Réveillon em que ele se jogou na piscina de uma pousada e esvaziou a água da piscina porque ela era revestida de vinil, as patinhas dele rasgaram o vinil, toda uma longa história que termina com ele (e minha dívida exorbitante) sendo perdoados. Que momento!

O fato é que, a cada dia que passo com os cães,  aprendo a tragar meu próprio constrangimento em praça pública. Não deixa de ser uma forma de me humanizar e travar relações íntimas com estranhos em menos de dois segundos de contato visual — seja porque a cachorra roubou uma pelúcia da mão de um bebê e não pretende devolver, seja porque o cachorro se sentiu convidado para um piquenique alheio, não importa. Em cada um deles, sinto inveja da espontaneidade dos cães, mas me aproximo dela em alguma medida.

Ou sou a pessoa mais sortuda do mundo, ou louca ou ambas.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.