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Luiza Sahd

Cat Person: por que um conto de ficção mobilizou a internet?

Luiza Sahd

15/12/2017 08h00

Vamos começar admitindo que a foto do texto também foi um golaço. (Foto: Elinor Carucci para a New Yorker)

 

Na última segunda-feira (11), o site The Verge divulgou uma declaração pesada de Chamath Palihapitiya, ex-executivo do Facebook. Durante um fórum da Escola de Negócios de Stanford, Palihapitiya afirmou que "se arrepende de ter colaborado no desenvolvimento de ferramentas que estão dilacerando o tecido social".

Na mesma segunda-feira, a revista New Yorker publicou "Cat Person", conto de ficção escrito por Kristen Roupenian. Menos de uma semana depois, o texto de Roupenian já é o mais lido da New Yorker em 2017, o que não é pouca coisa pensando no padrão da revista e dos autores que publicam por lá. A própria autora disse no Twitter que ainda não entendeu por que a história causou tanto furor, mas provavelmente tem a ver com as palavras de Palihapitiya (o executivo arrependido do Facebook) e outra coisinha mais.

A partir daqui, sou obrigada a dar spoilers de "Cat Person", que se desenrola sob a perspectiva de Margot — garota de 20 anos que começa um flerte com Robert, o cara mais velho, atraente pero no mucho, um tipo normal, enfim.

Além de ser muito bem contado, o tempero principal de "Cat Person" não é nada de outro mundo: um rolinho que começa despretensiosamente vai virando um filme de suspense que provoca familiaridade. A gente não só sente que já assistiu como tem a impressão ter protagonizado essa história, seja no lugar da Margot ou do Robert.

Eles passam semanas de papo furado por mensagens de texto e vão construindo uma intimidade virtual, com direito a piadas internas e tudo o que provoca aquela falsa sensação de vínculo legítimo. Em tempos de Tinder e happn, o leitor passa metade do texto pensando "hahaha, é assim mesmo". Partindo deste princípio, o ponto de virada (quando ambos começam a se estranhar no contato físico) nem deveria ser chocante. No nosso íntimo, sabemos que falar com um celular é diferente de ter uma pessoa diante do próprio nariz, mas como custa aceitar isso e romper com esse hábito!

Para além do problema nas relações virtuais — que derretem feito castelinho de areia na praia quando a gente começa a lidar com o outro pessoalmente –, Cat Person tem uma cena de sexo que comove pelas razões opostas às que uma cena de sexo deveria provocar:

"Durante o sexo, ele a movimenta por uma série de posições com eficiência brusca, virando ela de lado, para lá e para cá, e ela se sente uma boneca novamente, como se sentiu na loja de conveniência, mas agora não um tipo especial — uma boneca feita de borracha, flexível e resiliente, uma figurante para o filme que estava passando na cabeça dele"

Para Margot, foi uma noite de sexo ruim. Ela cogitou desistir da transa no meio, mas foi até o fim porque já tinha dado o consentimento e não queria parecer o tipo de pessoa que pede um prato no restaurante e, quando ele chega, diz que não quer mais comer. Como tudo sempre pode piorar, a prova de que Robert adorou a transa veio em forma de mensagem, com uma chuva de emojis de coraçãozinho (e um golfinho que ele deve ter apertado sem querer no final). Mais nós em 2017 do que isso, impossível.

O mal-estar feminino do conto provocou indigestão também em muitos homens nas redes sociais. Vários criticaram a cena, talvez porque a carapuça do sexo que não leva em consideração a diversão da parceira estivesse pinicando a cara deles.

Ver gente lendo e debatendo ficção na internet parece um pequeno milagre se paramos para pensar nas coisas que costumam ser pauta do dia, mas a parte triste disso é o porquê de "Cat Person" ter virado um clássico instantâneo: a história não é uma obra de ficção, de jeito nenhum. São tantas pessoas que passam por isso quanto as que não sabem como verbalizar.

Fora isso, não deve ser acaso o fato de muitos homens acreditarem que temos menos libido do que eles; o que muitos não sabem é que não temos mais libido para continuar transando sem ter o nosso prazer contemplado.

Talvez isso responda à pergunta de Kristen Roupenian, que, com um trabalho tão singelo, deu voz a sabe Deus quantas mulheres. Da minha parte, fica um MUITO OBRIGADA e essa análise um pouco menos refinada:

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.