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Luiza Sahd

Se você confia na sua memória, deveria começar a desconfiar

Luiza Sahd

06/11/2017 08h00

Vem comigo nesse raciocínio. (Foto: Reprodução/ Twitter)

 

Memória fraca sempre foi o meu forte. Não sei se foi deficiência de ovo, peixe ou aleitamento materno na dieta, mas a única coisa que nunca esqueço é de esquecer as coisas. Por isso mesmo, como todo desmemoriado, sou o melhor perfil de pessoa que qualquer amigo poderia escolher para contar segredos. Uns dois dias depois, sei nem do que se tratava a fofoca.

Eternamente intrigada com esse fenômeno cerebral, acabo lendo tudo o que aparece por aí a respeito do assunto. Desnecessário dizer que esqueço tudo um pouco depois, certo? Certo.

Mas recentemente fui a um debate cujo tema era "Memória e literatura" e esse aí, sim, deixou lembranças. Como poucas vezes na vida, ser meio planária fez todo sentido.

Desde que o mundo é mundo a gente carrega a angústia de reter memórias, principalmente as de momentos decisivos — e os bonitos, em especial. Com certeza, a câmera fotográfica não foi inventada para postar selfie e ganhar curtidas no Instagram (mas que bom que também serve para isso). Ela deve ter surgido porque, no fundo, sabemos que ninguém pode confiar totalmente no próprio sistema cognitivo e, nisso, estamos cobertos de razão. Talvez as câmeras sejam o recurso mais objetivo que temos à mão para guardar registros. Deve ser por isso que somos tão fascinados por elas.

O tal debate literário questionava se, ao fazer um relato sobre qualquer coisa que presenciamos, a gente consegue ser fiel aos acontecimentos ou se eles acabam fatalmente moldados pelas nossas emoções em relação ao que estava acontecendo. E é claro que a opção dois ganha com sobra. Um fato é só um fato; uma lembrança é uma epopeia. Até com câmera na mão a gente escolhe enquadrar o que nos parece mais conveniente.

Um exemplo de que gosto muito sobre a falácia da memória é o do amor versus desamor. Você sai com o namorado hoje e, no dia seguinte, qual é a memória? "Melhor passeio, melhor dia!". Um mês depois, vocês brigam. Ao tentar reconstruir a memória do "melhor dia", a conclusão pode ser "me enganei, foi só bom. Inclusive odiei um comentário lá que ele fez sobre mim". De certa forma, nenhuma versão da história é mentirosa.

Não existe muita objetividade na vida de modo geral e, por mais que a gente tente não aumentar nem inventar um ponto num conto, a memória é ficção. Pode parar de se gabar da sua memória de elefante aí, campeão! (Mas se você nunca tranca as chaves dentro do carro porque lembrou de guardá-las no bolso antes de fechar a porta, pode sentir um pouquinho de orgulho, sim).

Depois de pensar no número de vezes em que vamos reinterpretando nossas lembranças ao longo do tempo, concluo que, no fundo, não confio na minha memória por motivo de bom senso ou autoconsciência. Se bem me conheço, vou recheando os fatos reais com camadas de emoção e, no final, sabe-se lá o que aconteceu de verdade.

Fazendo um cozidão das nossas lembranças tantas vezes, elas acabam virando eternas novidades. Memória é ficção, no fim das contas. Mas alguma existe alguma coisa na nossa cabeça que não seja?

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.