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Luiza Sahd

A insubordinação europeia podia virar moda no Brasil

Luiza Sahd

12/09/2017 08h00

Na vida, a gente devia dar mais bananas por aí (Foto: iStock)

 

No nosso Dicionário de Língua Portuguesa, um sujeito subordinado é:

1. que é hierarquicamente inferior e dependente de alguém ou de alguma coisa; subalterno.

"classe s."

2. que, em relação a outro, tem apenas papel secundário.

"o corpo deve ser s. ao espírito"

3. gram que exerce uma função sintática (de sujeito, adjunto adnominal, complemento etc.) dentro de uma oração principal (diz-se de oração, ou de cada um dos seus termos).

4. adjetivo substantivo masculino

que ou aquele que serve ou trabalha sob as ordens de outrem; subalterno.

"oficial s."

5. adjetivo substantivo masculino

gram m.q. REGIDO.

Importantíssimo que em tudo na vida haja alguma ordem. Fogo que a gente seja, na prática, só trouxa mesmo.

Morar fora me dá panorama de muita coisa, mas talvez a mais assombrosa delas seja a abundância de insubordinados na Europa. Aqui, já tomei bronca de tudo quanto é categoria de pessoas que seriam subalternas no Brasil. A zeladora me esculhambando por pedir informações um minuto antes do fim do expediente; o carteiro me acelerando pela demora em atender a porta; o garçom que te deixa falando sozinho em caso de pedido errado; o pessoal que lava a rua fazendo sinalzinho com a cabeça pra você mudar de calçada caso não queira um banho-surpresa; a faxineira reclamando da sujeira. Todo dia, um monte. Quase todos, com razão.

Por que a gente é tão incitado a subordinar e por que existe tão pouca gente insubordinada no Brasil?

Qualquer pessoa que saia da cama para trabalhar vai sofrer injustiças em algum momento. A primeira delas é ter que usar um artefato de tortura chamado "despertador", a segunda é o transporte público e o que vem depois disso é lucro. Mas daí você vê uma coisa muito errada e não questiona porque 1) quer evitar conflito; 2) tem medo de ser repreendido/demitido/humilhado ao pedir o que deveria ser seu por excelência.

Desde tempos imemoriais, levo a pecha de insubordinada. Discutia entre família, na escola, na universidade, no estágio, nos relacionamentos, no emprego. Eu virei uma profissional freelancer e uma mulher solteira, então não dá para dizer que seja uma postura exatamente confortável; também não dá para dizer que seja ruim.

Lembro de um embate por cobrar pagamento em dia. Queria muito que tivesse acontecido só em um ou dois trabalhos, mas não. E esse me marcou bastante porque o chefe insinuou que eu queria uma exceção especial porque sei lá, tenho belos olhos verdes (não tenho). "Estamos com vários pagamentos atrasados, existe uma fila".

Se eu quero exceção? Eu queria era fazer um levante de funcionários que parassem de produzir enquanto não recebessem a contrapartida, mas, aparentemente, ninguém estava no pique de levantar. E aí a maluca pregando em pé no meio da praça fica sendo: você.

Teve também o chefe espanhol aqui que, ao escutar minhas desculpas por ter uma emergência médica em um dia de muito trabalho, respondeu: "Não se desculpe por isso. Quando eu precisar te demitir, não vou escolher um dia conveniente para você. Vou escolher o mais conveniente para mim". Que coisa mais honesta, quase tatuei a frase. Ainda bem que era um salário modesto e não sobrou grana para a tattoo.

A gente se subordina em diversos outros contextos. É a cantada asquerosa que não respondemos, é o relacionamento em que nos sentimos inferiores e aceitamos qualquer cobrança descabida, é a tradição familiar que não leva em conta a nossa individualidade. Levantar dá trabalho, dá vergonha e dá medo mesmo. Chuto que cruzei a barreira da insubordinação na escola, quando um professor me escolheu aleatoriamente para expulsar da classe barulhenta bem no dia em que eu estava de bico fechado. Logo eu, Insubordinada de Mello.

Gosto muito dessa eu adolescente que, disfarçando mal o tremor das pernas, respondeu que não ia sair não. Chegou bedel, chegou colega implorando, só faltou chegar o pessoal da Aeronáutica para me convencer a descolar a bunda daquela carteira. Quando tocou o sinal, finalmente recebi a condução coercitiva para a diretoria e, ali, tomei um agradável cafezinho com o diretor papeando sobre amenidades porque poxa, eu tinha razão, mas não podíamos desautorizar o professor perante a classe.

Na ocasião, deu para entender duas coisas: uma é que se você está certo mesmo, o outro também sabe que está errado. Ele nem sempre vai confessar, mas você não precisa ser conivente. Outra é que há infinitos modos de se opor a isso, inclusive melhores do que os meus, mas que pena que seja uma prática tão mal vista.

DEUS ME LIVRE de conjecturar sobre política aqui, mas suspeito que enquanto houver uma legião de subordinados pelo mundo, haverá a seleta estirpe de subordinadores rindo da nossa cara. Talvez escondendo R$ 51 milhões num bunker enquanto o resto da galera se esfola para ter acesso ao básico da dignidade, talvez aconselhando que a gente "Não pense em crise, trabalhe", às vezes só curtindo o exercício de te colocar sob controle, porque seres humanos amam sentir que controlam alguma coisa nessa vida.

E ninguém controla nada. No dia em que todo mundo souber disso, aí a confusão será feita. Ou desfeita.

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.