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Luiza Sahd

Cidades ensolaradas não deixam a gente curtir uma fossa em paz

Luiza Sahd

29/08/2017 08h00

Tomara que no céu tenha pão mesmo. (Foto: Reprodução/TV Globo)

 

Caí no golpe do céu de Madrid por mais de dois anos. Tem até lógica: ao ser paulistana, sou a vítima perfeita e me deslumbrei com o fato de que o céu de Madrid nunca fica cinza. E ninguém tem o direito de sentir desânimo quando acorda e dá de cara com uma janela perenemente azul.

Quando eu cheguei por aqui, eu nada entendi (desculpa, Caetano): de maio a setembro, não vi chover nenhuma vez. Somos vizinhos do Marrocos, e caso o visitante desatento não se dê conta do que isso implica, as ondas de ar quente que chacoalham o avião no pouso ou os sangramentos nasais mostram empiricamente o que acontece quando se está submetido a uma umidade relativa do ar a 15% por vários dias.

É engraçado que um dos motivos definitivos na escolha dessa cidade tenha sido o fato de eu não saber lidar com a imensa oferta de dias cinzentos em São Paulo. Então, me achei merecedora de um lugar mais ensolarado para chamar de meu e hasta la vista, SP. Um mês depois, desesperada, já estava baixando aplicativo com som de tempestades para tentar dormir — apesar do pavor de trovões que me assombrou a vida toda.

Depois de muito creme de mão, muito balm labial, o estranhamento do estio passou. A gente se acostuma até com o que é ruim. Com o que é bom, vish.

Mesmo no inverno em Madrid, os dias lindos dão trégua muito raramente. A cada duas ou três semanas, garoa. Quando chove de verdade, a cidade ganha pontos de alagamento (tão familiares, saudades!) e várias árvores caem. Ninguém aqui está preparado para a chuva, e já adotei o saudável hábito de usar as 3 gotas que caem por ano como desculpa para cancelar passeios. A vida adulta consiste em pouco mais do que marcar passeios e torcer para que sejam cancelados, né.

Estou vivendo o terceiro verão madrileño e já entendi alguns ritos locais. A cada final de maio, as pessoas começam a entrar e sair de bares com terraço aos borbotões. Elas tem aquele olhar meio louco de quem passou mais de um semestre usando três camadas de roupa, tirando duas no metrô, botando tudo de volta e adicionando cachecol ao subir as escadas. Elas começam a andar armadas (de jarras de tinto de verano) e perigosas.

Nunca entendi se é o calor que vai ensandecendo a galera ou a galera ensandecida piora a sensação térmica, mas o fato é que passei por uns três momentos pessoais bem críticos neste verão e não pude sofrer, porque o céu vibrante e as saudações coletivas ao sol não me outorgaram isso aí. A rotina é acordar, molhar a cara em frente ao ventilador, correr pra rua cedo, voltar tarde e dormir o máximo de horas que essa filial do inferno permitir (em média, umas cinco, das 5h às 10h, quando o ar e o asfalto baixam um pouco dos mil graus). Repete por três meses. Porque três meses passam rápido demais e, em fevereiro, você estará terrivelmente arrependido caso não tenha armazenado euforia suficiente em julho.

Dizem que os espanhóis são líderes em consumo de remédios para dormir na Europa. Como boa novata tonta, experimentei as tais cápsulas naturais de Valeriana em 2015 e me deu uma onda tão forte que acordei segura de que tive revelações espirituais. Obrigada, mas não, obrigada.

Continuo encarando o verão de Madrid na raça. Só que houve algum equívoco no termostato celeste hoje e, ao acordar com mais uma ressaca monumental de cerveja quente, abri o que pude dos olhos e encontrei uma janela cinza. Que alegria é poder ficar triste. Puta que pariu, finalmente! Chorei mais do que o Didi Mocó contando a história de "No céu tem pão". E morri.

Aproveite o céu de São Paulo para curtir pequenos momentos de autocomiseração. Isso aí é um privilégio e deveria ser um direito inalienável.

O céu de Madrid é um ditador. Ele não deixa o poeta sentir a dor que deveras sente (desculpa, Fernando Pessoa!).

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.