'Você prefere porras ou churros?' e outros dilemas com a língua espanhola
Querida Língua Portuguesa,
Andei te traindo.
Devo tudo a você, eu sei, eu sou filóloga. Ah, não! Em português, é beletrista que chama quem é formado em Letras, né? Pois é, eu tô enrolada com o espanhol. Mas tô mesmo, e, dessa vez, não é como quando eu botava lá no currículo que tinha Espanhol Intermediário, não.
Tô chamando beletrista de filólogo, apelido de sombrenombre e sobrenome de apellido. O espanhol chama pudim de flan, e o que você chama de flan, ele chama de pudín. Fica muito difícil não dar na cara que me envolvi com ele. Quão ridículo seria dizer que o problema não é você, mas o momento que estou vivendo?
Nem precisa jogar na minha cara que, com 30 anos nas costas, a gente não tem mais idade pra se envolver emocionalmente com duas línguas. Desde que inventei de fazer isso, o Roberto Carlos, meia-esquerda da nossa Seleção, não sai da minha cabeça. Lembra quando ele passou uma temporada jogando na Espanha e voltou com mais sotaque do que o próprio Julio Iglesias? Pois eu tô só o Roberto Carlos, e, para piorar, com sotaque mais canarinho ainda. Que horror.
Sei que não é desculpa, mas morar longe tem sido meio aflitivo. Fui até Portugal tentar reacender nossa paixão e… tóin! Por lá, o pessoal fala tudo diferente do que eu aprendi com você. Não queria fazer intriga não, mas, em Portugal, eles te chamam de brasileiro. É mole? Eu te defendi. Disse que é português, sim.
Não sei mais como lidar com essa vida dupla. Quando estou longe de você, tenho vontade de falar sobre cafuné, acho criminoso chamarem pipoca de palomita (onde já se viu se referir a uma PIPOCA usando o diminutivo de pomba? Pomba e comida, definitivamente, não combinam), dou risada toda vez que leio peluca ao invés de peruca. Peruca já é uma palavra engraçada por natureza, mas com a letra "L", só melhora.
Também dei risada quando descobri que, em Madrid, as lojas chamam fantasias de disfraces. Será que os espanhóis, quando compram uma roupa de odalisca, acham que estão realmente enganando alguém com esses disfarces? Tadinhos.
Eu poderia te iludir e dizer que amar, mesmo, só amo você… mas é complicado. Às vezes, falo com algum compatriota e preciso me segurar para não dizer "!Ay no!" ao invés de "Para com isso!". Já me desesperei tentando explicar a amigos que uma pessoa agobiada é mais do que desesperada. Tá faltando isso aí para você, português, desculpa dizer. Você não imagina o que é um agobio e como é bom pensar que a palavra mais dramática do seu dicionário pode ter uma camada extra de drama no dicionário espanhol.
E o tanto de vergonha que eu já passei aqui por sua causa?
Teve a madrugada em que entrei num táxi em estado consideravelmente lamentável e perguntei pro moço quanto custava a corrida até meu bairro. Maquiagem borrada, cabelo desgrenhado, cheiro de cachaça, pacote completo. Infelizmente, pro espanhol, corrida é sinônimo de ejaculação. O motorista corou de rir, mas tinha um bom coração e me contou que, em castelhano, a nossa corrida de táxi se chama carrera.
E o ataque de riso que me deu quando vi uma placa enorme na Puerta del Sol dizendo algo do tipo "temos porras fresquinhas"? Até conseguirem me explicar que porras são tipos de churros, eu já quase tinha batido as botas.
Tô rindo, mas tô chorando também. Às vezes, tenho medo que vocês dois, português e espanhol, me abandonem… e eu passe a falar um dialeto no limbo entre ambos. Se acontecer, desisto de tudo isso e começo a logo grunhir. Vou na churrería, aponto para uma pilha de porras e rosno estendendo o dinheiro.
"De fome eu não morro" será minha última frase. Só não decidi ainda em qual idioma.
Desculpa, tá?
Com amor,
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