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Luiza Sahd

A privação é a mãe da gambiarra e a gambiarra é a mãe da criatividade

Luiza Sahd

05/07/2017 08h34

Você já se sentiu participando das Olimpíadas do Faustão por falta de tempo? Toda vez que um dos quatro despertadores do meu celular toca, eu grito "Jerônimo" e saio correndo.

Ontem, me peguei admirando a beleza de Madrid com um saquinho de cocô do cachorro na mão ao mesmo tempo em que pensava de todo coração "hmmm, que vontade de comer burritos".

Na semana anterior, tive que sair do trabalho duas horas antes do fim de turno porque o corpo já não aguentava em pé. Meu chefe pediu para passar no hospital.

– Sério?
Sério, Luiza.

Três horas de espera depois, dava para ouvir meu estômago de lá de Barcelona. Eu tinha uma marmita na mochila, muita privação de sono e nenhuma ideia na cabeça sobre onde comer aquilo. Achei que almoçar na fila mesmo seria deselegante com a moça que tinha acabado de vomitar a própria roupa. Na rua, nenhum banquinho. Deu medo de comer na sarjeta e precisar explicar a longa história para algum conhecido que me encontrasse ali no chão.

A vida é feita de escolhas e nem todas são fáceis: a gente nunca sai de casa planejando mandar um belíssimo estrogonofe para dentro no banheiro do pronto-socorro, mas pode acontecer. Saí do lavabo com cara de "ai, ai, dor de barriga" para justificar a demora, mas queria mesmo era ver o pessoal da limpeza se perguntando o que aqueles grãos de arroz que caíram no assento da privada (e achei melhor não tocar, por motivos óbvios) faziam ali.

Foto: Elke Wetzig

Na sexta-feira, deveria dormir, mas achei que merecia uma cerveja antes. Conversando com um artista espanhol radicado na Argentina, ouvi o que todo brasileiro precisava escutar para levantar o moral: "passei dois anos no Brasil e acho impressionante a criatividade desse povo. Nunca vi nada assim. Você saberia me explicar de onde vem isso?"

Pensei na miscigenação, nas proporções continentais do país, na riqueza das culturas regionais, na Gretchen participando do videoclipe da Katy Perry, na mistura de indie rock com eletro e um tiquinho assim de carimbó… Nada disso. A nossa criatividade vem da da falta de tudo e consequentes gambiarras.

Que outro povo improvisa churrasqueiras com qualquer material empilhável? Quem no mundo bota arame nas Havaianas e sai andando como se nada tivesse acontecido? Você acha que algum europeu pendura meia atrás da geladeira ou esquenta a cama com secador de cabelos no inverno? Até parece que um canadense algum dia vai cogitar fazer instrumento musical com lata vazia de achocolatado. Cara, eles vivem sem farofa!

Respondendo ao espanhol, tentei explicar, meio por cima, que "quem desce do morro não morre no asfalto". Sei lá se ele entendeu.

Brasileiros privados de sono, de tempo, de dinheiro, de transporte público e de qualquer tipo de conforto como um todo: vamos erguer a cabeça. A privação é a mãe da gambiarra, a gambiarra é a mãe da criatividade e a criatividade é a mãe da sobrevivência.

(Mas vamos tentar arrumar essa confusão também. Vai que a gente arruma tempo para dominar o mundo.)

Sobre a autora

Luiza Sahd é jornalista e escritora. Colaborou nas revistas Tpm, Superinteressante, Marie Claire e Playboy falando sobre comportamento, ciência, viagem, amor e sexo. Vive entre São Paulo e Madrid há anos, sem muita certeza sobre onde mora. Em linhas gerais, mora na internet desde 2008.

Sobre o blog

Um lugar na internet para falar das coisas difíceis da vida -- política, afeto, gênero, sociedade e humor -- da maneira mais fácil possível. Acredita de verdade que se expressar de modo simples é muito sofisticado.